Entre o pânico e o fim do mundo
- academiaresilienci
- 26 de ago. de 2024
- 3 min de leitura
A luz se apagou e lá estava eu. A dois metros do pânico e do fim do mundo.
O que Carmen tinha na cabeça ao me entregar um personagem tão importante a duas semanas da estreia? Eu nem sabia todas as falas de cor! E pior! Era a primeira vez na vida que eu encarnaria um personagem no teatro. Eu nunca tinha subido ao palco como outra pessoa, só como eu mesma. E agora estava ali. E ainda por cima, tinha a responsabilidade de começar a peça.
Sentada na primeira fila do teatro, após todos os sinais sonoros terem sido tocados. Eu deveria dar quatro passos até o palco, esperar a luz se acender em mim e começar a dar o texto. Mas estava em pânico. Absoluto e paralisante pânico. Como eu jamais havia experimentado em toda a minha vida. Lutava internamente, dividida entre me entregar definitivamente ao personagem e sair correndo apavorada.
A peça se chamava Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, escrita por Bertold Brecht. Fazia apenas sete meses desde que eu começara as aulas da Oficina de Teatro com a Carmen. De cara, ela me viu na seleção e perguntou o que eu fazia ali, já que tinha tanta experiência de palco. E eu disse a ela:
- Mas eu tenho tanto a aprender! Não sei nada de teatro. Só de música.
E quando ela começou os ensaios para apresentar a peça, que já estava produzida há dois anos, com elenco, figurino, cenário, tudo pronto, teve de substituir alguns atores. E me chamou para um dos personagens principais. Eu era o próprio Brecht, narrando a peça e cantando trechos, de improviso.
Carmen era doida, eu tinha certeza. Queria que eu cantasse toda a narração, de improviso. E o personagem, ela queria que fosse andrógino, porque Brecht era alguém transgressor, não tinha rótulos, devia causar estranhamento. Tudo bem, pra mim. Meu único problema eram os textos. Era muito texto e eu, péssima pra decorar.
A uma semana da estreia, ela mudou minha posição no cenário. Antes eu entrava e saía. Agora, ficaria fixa, em uma mesa, ao nível da plateia. Uma mesa de escritório, com uma máquina de escrever antiga, charuto, um caderno de notas, papeis, livros. Ufa, melhor assim. Graças a isso, eu podia colar o texto.
Ao montar a mesa, Carmen coletou antiguidades entre os amigos. Disse que era importante ter objetos de cena pessoais, criavam afetividade. Então, levei meu diário pessoal. O encapei com papel pardo, peguei uma caneta antiga e grudei trechos das falas, numerados, escondidos entre as páginas.
Essa coisa de usar objetos pessoais para construir o personagem caminhou comigo desde então. Certa vez, Carmen me deu uma pulseira. Eu a usei justo quando cantei na ópera que levava seu nome, Carmen, de Bizet, tirei uma foto com a pulseira compondo o figurino e mandei para ela. Na mensagem, relembrei o aprendizado. Os objetos levam boa energia. Hoje não tenho mais a pulseira, mas escrevo com uma caneta que ela me deu. O afeto e o aprendizado continuam.
Mas Carmen era doida, te inspirava a fazer coisas impossíveis! E com um sorriso no rosto que me fazia não pensar em recusar! Me afazia acreditar que eu conseguia. Eu era muito insegura, jamais faria algo assim, uma peça em duas semanas! Mas aquele sorriso, o incentivo dela...

- Vai!
Eu lá no escuro, encarei minhas botas vermelhas, emprestadas pela Carmen para compor o figurino. Aquilo me deu alguma coragem, ou insanidade, não sei bem.
Levantei-me da cadeira na primeira fila, sem pensar, e caminhei solenemente até a mesa. Virei-me no ponto da luz. Levantei a cabeça, olhando para o infinito. Não sentia nada, apenas respirava.
A luz se acendeu sobre mim. Olhei para o público. E tomada de personagem, comecei a ser Bertold Brecht.
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